16 de julho de 2013

Matéria Solar

1

Podias ensinar à mão
outra arte,
essa de atravessar o vidro;

podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;

ou então ser água,
onde, de tanto olhá-las,
as estrelas caíam.

2

O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.

Há um cavalo próximo do silêncio,
uma pedra fria sobre a boca,
pedra cega de sono.

Amar-te-ia se viesses agora
ou inclinasses
o teu rosto sobre o meu tão puro
e tão perdido,
ó vida



Claro que os desejas, esses corpos
onde o tempo não enterrou ainda
os cornos fundo — não é o desejo
o amigo mais íntimo do sol?
Que os desejas, como se cada um
deles fosse o último, último corpo
que o teu corpo tivesse para amar.


A tarde sacudiu as suas crinas,
as crianças demoram-se nos espelhos,
um amigo começa no verão,
no íntimo despir das suas luzes.

7

Conhecias o verão pelo cheiro,
o silêncio antiquíssimo
do muro, o furor das cigarras,
inventavas a luz acidulada
a prumo, a sombra breve
onde o rapazito adormecera,
o brilho das espáduas.
É o que te cega, o sol da pele.

8

O sorriso.
O sorriso aberto
contra o muro.

Exactamente
como as ervas,

é muito antigo.

E sobre as ervas
e o muro
debruça-se no caminho.

Quem o arranca,
e levará consigo?

9

Outra vez o pátio vidrado da manhã.
Vais surgir e dizer: eu vi um barco.
Era quando aos lábios me chegava
a porosa argila doutros lábios.
Estava então a caminho de ser ave.

10

A manhã parada.
O azul.
A fundura da pupila.

Não é ainda a sede,
a matilha,
a febre.

O tronco nu —
a luz vacila.

12

Tocar-te a pele
o pulso aberto
ao gume do olhar.

Que seja essa
a casa, a estrela
do primeiro dia.

Rosa inflamável,
boca do ar.

13

Aqui me tens, conivente com o sol
neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.

16

Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.

Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar.

27

Vacilantes perdem-se agora os dedos,
o mar é longe, vai-se a voz quebrando,
para morrer vai sendo tarde.

Não duvides: sou essa árvore,
essa alegria só prometida às aves.

36

Pela manhã é que eu iria
pela última vez
Iria sem saber onde a estrada leva.

E a sede.

45

Chove, é o deserto, o lume apagado,
que fazer destas mãos, cúmplices do sol? 

- Eugénio de Andrade -

2 comentários:

Merenwen disse...

Eugénio, mãos da minha alma...foi contigo que o descobri e é a ele que sempre volto agora. Tão bem descobrir que também tu voltas ás coisas iniciais que nos juntaram e nos levaram a partilhar tanto!

Mar* disse...

:)

Volto sempre às coisas essenciais, assim como voltarei sempre a ti.

*