20 de março de 2010

So close your eyes...



... open you heart.

Primavera...

... cadê você?!

Talvez tentasse mostrar-me o caminho...

A voz é grave e rouca.
Na mesa ao lado, chora uma criança que não conhece a memória.
Há uma voz quente que um dia me falou ao ouvido.
Dizia-me.
Tentava explicar-me os ventos, as marés,
o terno refúgio dos dias que estão longe.
Eu julgo que dormia aninhada, com os olhos brilhantes e o coração atento.
Talvez tenha sentido uma mão leve a percorrer-me as costas. Talvez devagar.
Fazia movimentos circulares. Talvez tentasse mostrar-me o caminho.
Dizia-me.
Eu não compreendi porque vivia como se recordasse já.
Não há tempo para o presente quando se está fechado na memória.
Disse.
Não vivia do passado. Não era isso que tentava dizer: Havia em mim a certeza
da recordação futura - como a espiral de onde não se sai.
A voz começou a delirar em círculos. Ofendidos talvez, os círculos.
Eu estava no centro desse som que baixava como se a qualquer momento
pudesse abater-se sobre mim. Sem me sufocar talvez.
Dizia. Dizia.
A linguagem tornava-se cada vez mais estranha e imprópria.
Como nos sonhos em que se procura gritar
talvez agitasse os braços levemente.
Mas nenhuma voz nos cabe nas mãos, nem nas palavras.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Alguém repetia.
Mas a voz era cada vez mais líquida e talvez não coubesse no poema.
As mãos arrastavam o corpo para o lugar onde a minha solidão
talvez recordasse a voz. Dizia-me. Para que mais rápido se interrompesse
o dia, para que mais rápido se recordasse
a vida. Eu ia rolando sobre a cama como uma criança em direcção ao abismo.
As mãos voltavam a trazer-me para o centro do círculo.
No silêncio, perderia a consciência. São sempre as vozes que nos trazem
de volta. Talvez.
Era o dia em que me encostei à parede para olhar o círculo, a voz, as mãos.
Como se observasse aquela solidão.
E não houve nada que me pudesse dizer: Talvez.



- Filipa Leal -

18 de março de 2010

É impossível ficar indiferente...


The Homebirth of Lucia Mae from Sara Janssen on Vimeo.

... a este vídeo e a esta família, concorde-se ou não com o estilo de vida e com as opções tomadas.


Quanto a mim, gostava de ter a coragem, a força de vontade e a determinação saudável que eles transmitem. Parecem-me verdadeiramente felizes... e isso é o que realmente importa!

17 de março de 2010

Do eterno viajante...



Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram – como se apagam as estrelas cadentes – e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite… Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama…
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra.



- Al Berto, in O Anjo Mudo -

Esquadros

14 de março de 2010

O rosto eterno...



Exercício terapêutico,4

Passeios à beira-mar. Andar de gaivota. Os barcos a remos do lago do Bom Jesus. Frigideiras. Jesuítas. Contar histórias. Cantar para adormecer a Mary Mary. Cantar baixinho ao ouvido da minha irmã. Ir  a concertos. Festivais de Verão. Viajar com o meu irmão e com a I. . Trabalhos manuais. Pintar. As aulas de desenho do Herr L. . Dançar. Os espectáculos e os cafés no TAGV. O Tropical. As Monumentais. Inventar histórias e vidas para pessoas que nem conheço. Olhar para dentro das casas através das janelas. Varandas, terraços e alpendres. Tomar banhos de sol. O tom de pele dos meus primos no Verão. Preparar tostas-mistas e batidos para a malta. Mesas grandes. Refeições demoradas. Boas conversas e discussões inteligentes. Dissertar durante horas sobre um assunto que me apaixona ou revolta. Bibliotecas. Casas com muitos livros. Pessoas inteligentes, sinceras e directas. As sardas da K. Observar a K. com o seu filho D. . Brinquedos de madeira. Caixas de música. Antiguidades. Peças vintage. Arcas e baús. As aulas de ballet e o sorriso do C. Digestivos. O jardim do Parnaso. Os fins-de-semana em casa da R. . Pijama parties. M&M's partilhados. Estações de comboio. Pousadas de Juventude. Comer chocolate. Beber Licor Beirão com o avô C. . As pescarias com o Tia A. e os miúdos. As rodas de conversas na esplanada. O pôr-do-sol. Ficar acordada e ver nascer o sol. Massagens. Banhos de espuma. Duches prolongados. Duches partilhados. Dormir nua. Andar descalça. Ficar horas na rebentação das ondas a olhar o horizonte. Partilhar silêncios cúmplices com pessoas especiais. Receber cartas. Caligrafias. Stickers. Os meus cadernos da primária. O colo protector da Senhora M. . Os elogios e a partilha constante e estimulante de sabedoria do Senhor Q. . O Bazar de Natal do Colégio. As rifas e os bolos de fatias enormes. Os lanches em casa da Frau B. . Biscoitos de queijo. Orquídeas e papoilas. Violetas oferecidas. Jardinar com a avó A. . Amores-perfeitos. Comer fruta directamente das árvores. Vindimar. Vinho doce. Pão com chouriço. Posta à Mirandesa. Ir ver o 2 à Pousada. O silêncio das escarpas do Douro. Andar a pé. Perder-me durante horas em cidades desconhecidas. Descobrir novos recantos na minha cidade. As pontes do Douro. Barcos rabelos. O areal de Porto Santo. Noites de lua cheia. Tomar banhos de mar de madrugada. Beijar muito. Serenatas. Fontes de água cristalina. Jipalhadas. Nadar no rio. Colares de flores. Campos floridos na Primavera. Mel à colherada. Nutella à colherada. Limonada gelada. Noitadas a ver os Óscares. Noites inteiras a conversar sobre tudo e sobre nada. As férias grandes da minha infância.

As mazelas físicas vão-me dado tréguas. A alma tem sido alimentada de pequenas coisas que me fazem levantar todos os dias de manhã e aguentar o dia conseguindo sorrir. Tenho sofrido muitas desilusões ultimamente e dói, uma vez mais, constatar que todas as pessoas têm a capacidade de nos magoar, mesmo aquelas que mais amamos.