Já disse que este tempo cinzento só me dá sonhinho?! Isso e fome. Bolo Rei torrado com queijo Brie (pouquinho, não é à primo ou à mana!) e café acabadinho de fazer nunca me pareceram uma combinação tão perfeita.
Vi o filme com 11 anos (quase 12), depois de ler o livro. Ambos faziam parte do programa de Biologia da minha 6ª classe (jamais me habituarei a chamar-lhe ano). Falou-se sobre sexualidade, drogas, vícios, comportamentos nocivos, DST, relações humanas, amor, amizade, valores e uma infinidade de outras coisas, com alguns risinhos à mistura, mas de uma forma séria, transparente e tranquila. Os meus pais tinham conhecimento do programa e confiavam na forma como era leccionado. Para além disso, sempre se mostraram disponíveis para esclarecer dúvidas e orientaram-nos naquilo que acharam necessário, conscientes, porém, que "as conversas importantes" se têm mais facilmente entre pares, com a irmã/prima mais velha ou a amiga/confidente. Cresci com a informação suficiente e com as ferramentas essenciais para poder traçar o meu caminho livremente, consciente das consequências das minhas escolhas.
Depois de tanto ouvir e ler sobre a nova lei que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar (Lei n.º 60/2009), as dificuldades na sua aplicação, os protestos de uns e de outros, os pareceres técnicos, etc e tal, temo que tudo se perca num floreado inútil, oco e vazio.
Pensei nisto tudo ao rever ontem o filme. Lembrei-me da traquinas N., que pulava o muro do colégio assim que soava o toque de entrada, privilégios de viver mesmo ao lado. A N. era igualzinha à Natja Brunckhors, a actriz que deu vida à Christiane F., e, por isso, o primeiro visionamento do filme foi algo perturbador para todos nós.
Mas rapidamente essa coincidência foi posta de lado, tornando-se o Wir Kinder vom Bahnhof Zoo, assim como a sua banda sonora, um marco inesquecível da nossa adolescência.
“ A amizade, pensava eu – e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre - , é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos. É curioso, os animais conhecem-na bem também. Existe amizade, altruísmo, solidariedade entre os animais. Um príncipe russo escreveu sobre isso… já não me lembro do nome dele. Há leões e galos bravos, criaturas de todo o género que tentam socorrer os da sua espécie que se vêem em apuros, sim, vi com os meus próprios olhos que, às vezes, ajudam também aos animais de outra espécie. (…).
Entre pessoas, vi menos exemplos. Para ser mais exacto, não vi nenhum. As simpatias que vi nascer entre pessoas diante dos meus olhos, acabaram sempre por se afogar nos pântanos do egoísmo e da vaidade. A camaradagem, o companheirismo, às vezes, parecem amizade. Os interesses comuns por vezes criam situações humanas que são semelhantes à amizade. E as pessoas fogem da solidão, entrando, entrando em todo o tipo de intimidades de que, a maior parte das vezes, se arrependem, mas durante algum tempo podem estar convencidas de que essa intimidade é uma espécie de amizade. Naturalmente, nesses casos não se trata de verdadeira amizade. Uma pessoa imagina – e o meu pai entendia as coisas dessa maneira – que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal? E se um amigo falha, porque não é um verdadeiro amigo, podemos acusá-lo, culpando o seu carácter, a sua fraqueza? Quando vale aquela amizade, em que só amamos o outro pela sua virtude, fidelidade e perseverança? Quanto vale qualquer afecto que espera recompensa? Não seria nosso dever aceitar o amigo infiel da mesma maneira que o amigo abnegado e fiel? Não seria isso o verdadeiro conteúdo de todas as relações humanas, esse altruísmo que não quer nada nem espera nada, absolutamente nada do outro? E quanto mais dá, menos espera em troca?(…)
Vês, dediquei-me a essas questões teóricas quando fiquei sozinho. Naturalmente, a solidão não me deu resposta. Nem os livros deram resposta perfeita. Nem os livros antigos, os estudos dos pensadores chineses, hebreus e latinos, nem os modernos que falam sem rodeios, mas dizem sobretudo palavras e não a verdade.(...)
No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.
- Que é que fica – pergunta o convidado – nos nossos corações?...
- A outra pergunta – responde o general. E não solta a maçaneta da porta. – A outra pergunta resume-se em saber o que ganhámos com toda a nossa inteligência, orgulho e superioridade? A outra pergunta é, se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida? Sei que é uma pergunta difícil. Eu não sei responder-lhe. Vivi tudo, vi tudo e não sei responder a essa pergunta. Vi paz e guerra, vi miséria e grandiosidade, vi-te cobarde e vi-me a mim mesmo vaidoso, vi luta e concordância. Mas no fundo, o significado da vida e das nossas acções talvez tenha sido esse laço que nos uniu a alguém – laço ou paixão, chama-lhe o que quiseres. Essa é a pergunta? Sim, é essa. Gostava que me dissesses – continua tão baixo como se tivesse medo de que alguém estivesse atrás das suas costas ouvindo as suas palavras -, qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão, talvez não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?... E talvez não se dirija a uma pessoa em concreto, mas apenas ao desejo mesmo?... Essa é a pergunta. Ou dirige-se a uma pessoa em concreto, desde sempre e para sempre à única e mesma pessoa misteriosa, que pode ser boa ou má, mas cujas acções e qualidades não influenciam a intensidade da paixão que nos une a ela? Responde, se sabes responder – diz mais alto e insistente.
- Porque é que me perguntas? – replica o outro tranquilamente. – Sabes que é assim. (...)"
- in "As velas ardem até ao fim", de Sándor Márai -
Tenho saudades do tempo em que os meus dias eram compassados pelas tardes inteiras a fazer construções de Lego, a inventar pequenos mundos e a criar histórias que, mais tarde, me habituei a passar para o papel.
Valente Ngwenya. O menino de Matalana. Pastor, mainato, pintor e homem do mundo.
Sinónimo de pintura, de arte, de cultura, de paz. Sinónimo de Moçambique e de África.
Grande responsável (um dos) pelo meu fascínio por África.
O mundo fica definitivamente mais pobre e este novo ano assinala já uma enorme perda.
“Acho que é um homem da ‘mundofonia’ – no sentido que era um cidadão do mundo. Desde cedo percebeu que a cultura era exactamente essa ausência de fronteiras e de limites”. - Mia Couto