5 de novembro de 2009

Hoje...


















...estou com muito frio!

Das heranças...

Testamento


Vou partir de avião

e o medo das alturas misturado comigo

faz-me tomar calmantes

e ter sonhos confusos

 

Se eu morrer

quero que a minha filha não se esqueça de mim

que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

e que lhe ofereçam fantasia

mais que um horário certo

ou uma cama bem feita

 

Dêem-lhe amor e ver

dentro das coisas

sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

em vez de lhe ensinarem contas de somar

e a descascar batatas

 

Preparem a minha filha

para a vida

se eu morrer de avião

e ficar despegada do meu corpo

e for átomo livre lá no céu

 

Que se lembre de mim

a minha filha

e mais tarde que diga à sua filha

que eu voei lá no céu

e fui contentamento deslumbrado

ao ver na sua casa as contas de somar erradas

e as batatas no saco esquecidas

e íntegras


- Ana Luísa Amaral - 

4 de novembro de 2009

Me too!

No princípio era.

Não dormia sem o escuro absoluto. 

Doíam-lhe os olhos de ter visto cidades, 

de ter esquecido gente, do frio 

do vidro nas palavras. Demorava tanto 

a entender o mundo que agora não dormia 

de muita luz que as coisas tinham 

antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto 

nesse lugar onde vivia com outros como ela 

que às vezes pensava: tão estranho nascer 

(quer dizer, nascer mesmo, estar aqui) 

para o dia passado com estranhos. 

E por isso, no princípio, não dormia 

sem procurar o amor, sem beijar na testa 

a noite que acabava serena e exausta como a noite. 

No princípio era. 

Depois esvaziou-se com cuidado. 


- Filipa Leal -

2 de novembro de 2009

Dos amantes enlaçados...

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

- Jorge de Sena -

1 de novembro de 2009

I miss...



















Nouvelle Vague

Eis a travessia que te proponho:

maravilhar-te as insónias
com o paciente crepúsculo da idade
acordar fora do corpo esquecer o olhar
sobre o pêlo ruivo dos animais beber
o fulgor das estrelas no esplendor da alba
nomear-te
para recomeçarmos juntos a vida toda

ensinar-te o segredo dos alquímicos minerais
acender-te um pouco de culpa
na imatura paisagem do coração

eis a travessia que te proponho
amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a música inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias

- Al Berto -