1 de julho de 2014

Colhe o dia, porque és ele*



Foz do Douro

Até já. Vou encher-me de mar, de sol, tempo, livros, música, filmes noite dentro, melancia, gelados, granizados e abraços. Vou arrumar gavetas, reais e mentais. Vou destralhar e descomplicar a (minha) vida. O futuro quer-se leve, o caminho avizinha-se longo, ainda que esperançoso. Vou preparar-me para o salto - não no vazio, mas no sonho, esse, que não me larga o consciente e o inconsciente. 

Volto com a luz dourada de Setembro. Menos enigmática, mais verdadeira e autêntica, que os medos serão todos deixados no fundo do mar. 

*Ricardo Reis

29 de junho de 2014

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Sou filha do mar e dos dias longos de Agosto. Vi o mundo dez dias depois do que era suposto, embalada que estava pelas ondas do mar frio e batido do norte, naquela mesma praia que iria povoar todo o imaginário da minha infância - Miramar. A minha mãe fez praia até à última, saltando ondas na zona da rebentação e deixando que muitas se desfizessem na sua barriga cheia de mim, para grande preocupação do meu tio Alfredo, que dizia que eu ia nascer ali mesmo, no sítio onde o mar enrola a areia, num abraço que tão bem conheço. Sou também filha do luar quente que cobre com um manto aveludado as terras transmontanas nas noites infinitas dos meses estivais - saí do mar para os montes, cheirando aquele aroma inconfundível que só quem se atreve para lá do Marão reconhece, com apenas quinze dias de vida. Atravessei os montes num 2Cavalos, numa viagem que marcaria irremediavelmente a bifurcação do meu coração: não vivo sem o mar e sou mais eu naquelas terras altas que teimam em beijar as estrelas mesmo quando o céu se enegrece, deixando-nos com a sensação de estarmos a ser sufocados pelo testo do mundo. 
Talvez por tudo isto sou incomparavelmente mais plena e mais tranquilamente feliz nos dias quentes, quando estou perto do mar ou naquele recanto a nordeste do país. Gosto do calor moleza que se nos cola à pele e à alma, deixando-me mais leve como a roupa que me cobre o corpo. Gosto de lavar pátios e varandas em noites quentes, molhando os pés com a mangueira e recordando os banhos da minha infância no jardim de casa dos avós. Gosto de melancia gelada a qualquer hora do dia ou da madrugada, em talhadas generosas ou em bolas de sorvete. Gosto da luz dos dias de Verão, daquela película quente que cobre o horizonte e do ar abafado das cidades quase desertas. Gosto de poder andar de havaianas ou sandálias quase o tempo todo, de sentir o sol e o vento na pele mais sensível dos pés. Gosto de dias inteiros na praia, intervalados nas horas proíbitivas de calar com sestas à sombra e jogos de cartas. Gosto de ler deitada na areia quando a praia está apenas suficientemente cheia, de forma a que o ruído em volta não me desconcentre a leitura. Gosto de chá de gengibre gelado com hortelã, de refresco de café e limão e de limonada acabada de fazer, adoçada com açúcar amarelo. Gosto de cerejas mergulhadas em cubos de gelo, de meloa como entrada de uma refeição, de ameixas de todas as qualidades e de melões bem maduros. Gosto de colher framboesas, amoras e groselhas e de apanhar uma barrigada delas, ainda quentes e a saber a sol e terra. Gosto de andar descalça, em todo o lado, de sentir o frio da tijoleira, a humidade da relva, a areia a escaldar, a terra seca, o chão dos pátios e alpendres banhados de sol. Gosto de dormir de janela aberta a noite inteira, da brisa suave que vai chegando com a madrugada. Gosto do facto de me apetecer tomar banho a qualquer hora do dia e da noite, sem receio do frio que sei que não vou sentir. Gosto do tonzinho dourado que a minha pele adquire lá para finais de Setembro, apenas aquela leve pincelada de pós terra e dourados, independentemente do número de dias em que tiver feito praia. Sou filha do sol, mesmo que o meu tom de pele e a cor dos meus olhos aconselhassem climas mais nórdicos. 
Nestes dias mais soalheiros e compridos, o meu raciocínio fica mais lesto, a minha imaginação mais fértil e a minha capacidade de concentração mais alargada. Por muito que me tenha habituado a gostar do Outono e do Inverno - e foi um esforço conseguido, sendo já capaz de desfrutar tudo o que de bom essas duas estações do ano nos têm para oferecer, serei sempre uma criatura mais solar, cujas baterias só se recarregam plenamente entre Abril e Outubro. No resto do tempo, faz-me falta a luz nas suas várias tonalidades, como só os dias de Primavera e Verão têm. Morro de saudades do cheiro das flores e da terra, do canto dos pássaros, das borboletas coloridas dos jardins. Sinto falta dos passeios à beira-mar nas noites insuportavelmente quentes, quando só a brisa marítima nos consegue refrescar. 
Nos verões da minha infância, tenho quase a certeza que os relógios todos paravam. Os dias eram mais lentos e a nossa noção de tempo quase uma sensação infinita. A canícula e a terra agarrada à pele eram lavadas em tanques de rega, com água de furos e muitas brincadeiras à mistura, numa alegria contagiante que nenhuma piscina conseguia igualar. Os piqueniques, na praia, à beira-rio ou onde a vontade ditasse eram uma constante, faziam-se farnéis e enchiam-se geleiras com uma precisão e rapidez quase militar, embora tudo o resto fosse de uma descontração que ainda hoje me comove. Estendiam-se mantas à sombra de oliveiras, de sobreiros e de figueiras. Faziam-se fogueiras para churrascos improvisados onde fosse preciso ou para fazer batatas à espanhola num panelão enorme, capaz de alimentar uma messe inteira. Saíamos de casa de manhã e aparecíamos à hora das refeições para voltar a desaparecer logo de seguida e só retornar com a lua bem alta ou íamos telefonando de casa de vizinhos e amigos a avisar que comíamos por ali mesmo, que não contassem connosco até à noitinha. Não tínhamos telemóveis. Se por acaso ninguém atendesse o telefone fixo, havia um voluntário forçado que ia dar o recado ao primeiro adulto que encontrasse. Improvisávamos Jogos Sem Fronteiras nas ruas, nos pátios ou nas hortas, dependendo do que estivesse mais à mão. Comíamos casadinhos de queijo e marmelada, pão com tabletes de chocolate que a tia Maria trazia no fundo das malas quando regressava da França, fruta colhida directamente das árvores e legumes colhidos por nós na horta. Andávamos de tractor em condições de segurança que poriam os cabelos em pé a muita gente nos dias que correm, mas não éramos inconscientes e sabíamos que os mais velhos estavam responsáveis pelos mais novos e éramos um por todos e todos por quem precisasse de nós. Dormíamos sestas deitados em cima de sacos de batatas e fardos de feno, nas escadas da tia Freire quando o sol virava para a curtinha ou em qualquer lugar onde a sombra fosse maior que o nosso corpo. A avó preparava-nos lanches no alpendre, bebíamos leite frio com groselha ou Suchard Express em copos altos e comíamos bolachas compradas nas Paquitas, em Alcañices. Havia muitos incêndios e sabíamos o significado dos vários toques da sirene dos bombeiros de cor. Íamos de jipe ou de tractor ajudar a apagar os fogos, levávamos leite, água, bolachas e fruta para os bombeiros exaustos. Corríamos as festas populares e romarias de todas as terrinhas em volta, não perdíamos uma procissão, um fogo-de-artifício ou um bailarico. Comíamos Posta à Mirandesa assada na brasa debaixo de um sol implacável e um bailado de moscas, terra seca e palha que paira pelo ar do planalto mirandês nos dias quentes de Setembro, ignorando todas as regras de higiene, numa das mais bonitas romarias que conheço - as festas em honra de Nossa Senhora do Naso ou o Naso, simplesmente. Encenávamos espectáculos de variedades ao fundo da rua cortada temporariamente ao trânsito para esse efeito: o palco era o largo entre a casa do Tomé e da tia Freire, o pano de cena uns lençóis velhos emprestados pelas avós, o guarda-roupa eram todos os disfarces de Carnaval de anos anteriores e os assaltos consentidos a guarda-fatos e baús da família, a plateia era composta por bancos de traves de madeira feitos por nós, assim como o Bar, onde o Tó vendia, ao intervalo, o café, a limonada, as cervejas e os bolinhos feitos entre todos. O público crescia de ano para ano e chegamos mesmo a ter quem viesse de fora propositadamente para nos ver actuar. A receita da bilheteira e do bar era depois canalizada para fins vários: um ano enfeitamos a igreja toda com flores muito bonitas para as festas da vila, noutro mandámos fazer uma tampa para o poço que há logo à entrada da Capela de Pereiras e onde já várias pessoas tinham caído, nos restantes foi entregue à paróquia para o que mais fizesse falta e no último oferecemos um jantar a todas as pessoas que nos tinham ajudado ao longo de tantos anos de aventuras, maluquices e sonhos alcançados. 
Sou filha do Verão - do primeiro, que me viu nascer e de todos os outros que se seguiram e me tatuaram a personalidade, o feitio, as emoções e o pensamento, de uma forma que mais nenhuma outra época do ano conseguiu. Serei sempre daquele mar frio de Miramar, das rochas onde raspávamos lapas para o arroz que jantaríamos à noite, das pocinhas onde dei as primeiras braçadas, das algas com que o avô me cobria e massajava as costas, dos gelados, das batatas fritas e das línguas da sogra que comi naquele areal. Os concursos de capitais de países do mundo inteiro, a Barca Chica Chica cantada vezes sem conta, as viagens para a praia no Santana descapotável, as jipadas por entre montes e vales mais ou menos desconhecidos e todas as memórias estivais farão para sempre parte da minha geografia sentimental e moldaram-me de uma maneira perpétua, contribuindo, nada paradoxalmente, para a minha forma de ver o mundo, para o meu espírito de eterna viajante e para uma abertura de pensamento que tento não descurar nunca - o ser humano é tão profundo, rico e diversificado como as águas dos oceanos e quero mergulhar cada vez mais nesse mundo riquíssimo que somos cada um de nós.