Porto - Dezembro de 2010
Hoje o Natal chegou mais cedo aqui a casa. Pelo correio recebemos uma caixa enorme, cheia de presentes. Remetente: o Comandante. Lá dentro, um embrulho para cada um de nós, com respectiva etiqueta, o nosso nome e um segundo remetente: o Pai Natal.
Estupefactos, lá fomos abrindo um a um, que a ordem era que deviam ser desembrulhados antes de 24. Por entre muitos sorrisos, as lágrimas iam-nos escorrendo pelo rosto, sem pedir licença, num sufoco que nos apertava o peito e fazia transbordar a alma. O coração parou-nos a todos quando vimos o presente para o avô - uma moldura digital. Bastou um simples clicar no on, para vermos passar à nossa frente todo o filme de uma vida, de várias vidas - as de todos nós.
Hoje foi o dia em que vi o meu avô chorar em muito tempo. Nem durante a fase critica que passou (e ainda está a passar) o vi emocionar-se tanto. Ligamos ao Comandante para agradecer. Disse-nos que éramos como família para ele. Riu-se quando lhe disse que estava muito jeitoso naquela fotografia a bordo do navio, na sua época na Marinha Mercante, e retorquiu que ainda assim se conserva. Verdade. Apesar dos seus oitenta e muitos anos, de uma vida bem vivida, dos muitos desgostos que sofreu nos últimos anos e dos dias complicados que vive actualmente, continua com uma bela figura e um enorme coração. Avisou-me que chega a 28 e mandou-me colocar o espumante no frigorífico, para brindarmos ao novo ano que aí vem.
Do grupo de amigos do avô, cujas famílias se tornaram amigas da nossa, fazendo-a crescer ainda mais, já poucos são os que restam. Lentamente, vamos assistindo à partida de toda uma geração que me habituei a admirar e a gostar desde que nasci. Uma geração que contribuiu enormemente para aquilo que sou hoje. Por isso, é cada vez mais comovente ver a amizade entre o avô e o Comandante. Dura há 70 anos, parecem os marretas a falar sempre que estão juntos, mas não se podem ver um sem o outro.
Hoje o avô chorou como um menino. Falou-me dos amigos que partiram. Da época difícil em que se transformou para ele o Natal, das saudades que sente da avó. Das insónias e das noites que passa a fazer retrospectivas. Da condição em que se encontra, da dependência quase total. Do sofrimento que sente de cada vez que lhe dou banho ou lhe mudo a fralda e da gratidão, ao mesmo tempo. Da sorte que tem em ter-nos a todos por perto. Contou-me histórias que conheço de cor. Recordou nomes, lugares, peripécias. A casa do Comandante na Granja. As tainadas, os convívios de outrora.
Hoje foi o dia em que o Comandante, muito mais do que o presente que chegou pelo correio naquela caixa enorme, me deu a possibilidade de chegar mais perto do meu avô, de ver para além daquele transmontano casmurro, orgulho, posso-mando-e-quero.
O reconhecimento mútuo e a amizade entre estes dois homens é também uma das grandes forças para continuarem a viver. Ao vê-los, é-me cada vez mais claro de que a família não se escolhe, mas que podemos ir criando a nossa própria família ao longo da vida. Os amigos-família, aqueles que estão sempre lá, até ao fim.