18 de dezembro de 2010

Amigos-família.


Porto - Dezembro de 2010

Hoje o Natal chegou mais cedo aqui a casa. Pelo correio recebemos uma caixa enorme, cheia de presentes. Remetente: o Comandante. Lá dentro, um embrulho para cada um de nós, com respectiva etiqueta, o nosso nome e um segundo remetente: o Pai Natal.
Estupefactos, lá fomos abrindo um a um, que a ordem era que deviam ser desembrulhados antes de 24. Por entre muitos sorrisos, as lágrimas iam-nos escorrendo pelo rosto, sem pedir licença, num sufoco que nos apertava o peito e fazia transbordar a alma. O coração parou-nos a todos quando vimos o presente para o avô - uma moldura digital. Bastou um simples clicar no on, para vermos passar à nossa frente todo o filme de uma vida, de várias vidas - as de todos nós.
Hoje foi o dia em que vi o meu avô chorar em muito tempo. Nem durante a fase critica que passou (e ainda está a passar) o vi emocionar-se tanto. Ligamos ao Comandante para agradecer. Disse-nos que éramos como família para ele. Riu-se quando lhe disse que estava muito jeitoso naquela fotografia a bordo do navio, na sua época na Marinha Mercante, e retorquiu que ainda assim se conserva. Verdade. Apesar dos seus oitenta e muitos anos, de uma vida bem vivida, dos muitos desgostos que sofreu nos últimos anos e dos dias complicados que vive actualmente, continua com uma bela figura e um enorme coração. Avisou-me que chega a 28 e mandou-me colocar o espumante no frigorífico, para brindarmos ao novo ano que aí vem.
Do grupo de amigos do avô, cujas famílias se tornaram amigas da nossa, fazendo-a crescer ainda mais, já poucos são os que restam. Lentamente, vamos assistindo à partida de toda uma geração que me habituei a admirar e a gostar desde que nasci. Uma geração que contribuiu enormemente para aquilo que sou hoje. Por isso, é cada vez mais comovente ver a amizade entre o avô e o Comandante. Dura há 70 anos, parecem os marretas a falar sempre que estão juntos, mas não se podem ver um sem o outro.
Hoje o avô chorou como um menino. Falou-me dos amigos que partiram. Da época difícil em que se transformou para ele o Natal, das saudades que sente da avó. Das insónias e das noites que passa a fazer retrospectivas. Da condição em que se encontra, da dependência quase total. Do sofrimento que sente de cada vez que lhe dou banho ou lhe mudo a fralda e da gratidão, ao mesmo tempo. Da sorte que tem em ter-nos a todos por perto. Contou-me histórias que conheço de cor. Recordou nomes, lugares, peripécias. A casa do Comandante na Granja. As tainadas, os convívios de outrora.
Hoje foi o dia em que o Comandante, muito mais do que o presente que chegou pelo correio naquela caixa enorme, me deu a possibilidade de chegar mais perto do meu avô, de ver para além daquele transmontano casmurro, orgulho, posso-mando-e-quero. 
O reconhecimento mútuo e a amizade entre estes dois homens é também uma das grandes forças para continuarem a viver. Ao vê-los, é-me cada vez mais claro de que a família não se escolhe, mas que podemos ir criando a nossa própria família ao longo da vida. Os amigos-família, aqueles que estão sempre lá, até ao fim.

16 de dezembro de 2010

E assim acontece.










Há gerações inteiras que estão a partir. As nossas referências de sempre começam a sofrer grandes abalos e somos constantemente obrigados a enfrentar a nossa própria mortalidade.  Mas as obras de arte, assim como as almas grandes, são eternas.

15 de dezembro de 2010

Micocas*






Nestes últimos anos tenho (re)descoberto o gosto pela cozinha, pela gastronomia, pela alquimia dos ingredientes em combinações ancestrais ou inovações arrojadas, nem sempre bem sucedidas. 
Cresci numa família grande, de casas grandes e antigas, onde a cozinha e a mesa da sala de jantar assumem lugares preponderantes. Todas as refeições são, ainda hoje, um ritual quase sagrado. Os dias festivos e as datas especiais sempre foram sinónimo de mesa cheia, de comida e de gente à volta. 
O corrupio da vida actual coaduna-se mal com grandes produções culinárias, pelo menos no dia-a-dia, apesar disso não significar que não se possa comer bem e de forma equilibrada. Preocupa-me e entristece-me a falta de tempo para certas tradições, para o desfrute pleno e sereno dos pequenos grandes prazeres da vida.
Descobri que, nos dias que correm - e para além da paixão pela escrita, que me alimentará sempre (infelizmente, não literalmente, ainda!) - pouca coisa me dá tanto prazer como experimentar receitas, inventar novas fórmulas, ver os ingredientes ganharam vida e, dessa forma, poder alimentar aqueles que amo. É mais uma forma de criação, onde posso brincar com cheiros, sabores, cores, texturas, figuras geométricas ou mais abstractas. Enquanto estou entre tachos e panelas, o meu pensamento fica liberto para outros voos, esquecendo momentaneamente o mundo lá fora. É nessas alturas que aproveito para escrever mentalmente textos que não cabem aqui, que pertencem a um outro lugar, ao qual ainda só eu tenho acesso. Até ganharem a dimensão necessária que lhes permita fazerem o seu caminho, de pés bem assentes no chão e cientes da responsabilidade que carregam. Eu vou fazendo por isso.

* Uma parte dos presentes de Natal serão handmade, ao exemplo de anos anteriores. Mais do que o valor monetário, importa saber que foram feitos com muito amor e que me encontrarão inteira em cada um deles.

14 de dezembro de 2010

Só os grandes partem cedo demais.

A importância de um nome.

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontro
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anosjunto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
 
- Muriel, de Ruy Belo -

Não foi um bom ano.

Dar graças. Agradecer o termos chegado até aqui. Olhar para as coisas boas e tentar agarrar-me a elas. Fazer das coisas más aprendizagem para o futuro. O que não nos mata fortalece-nos. Crescer a cada dia, num amadurecimento sereno, que não nos destrua por dentro, nem nos transforme em pedras em forma de gente, amargas e insensíveis. Dar graças. Apesar do sofrimento, das doenças, da constante sombra da morte nas nossas vidas. Enaltecer os pequenos (grandes) momentos, as cumplicidades, os sorrisos, as lágrimas partilhadas. Abraçar muito e cada vez mais. Aprender a pedir e a aceitar ajuda. Estar-me cada vez mais nas tintas para o que os outros possam pensar sobre a forma como vivo a minha vida, as minhas escolhas e o caminho que tenho traçado. Acarinhar as pessoas realmente importantes, os amigos verdadeiros. Não perder tempo com quem não me quer bem ou me faz mal. Dar graças. Por, apesar de tudo, estarmos todos aqui, hoje; por mais ninguém ter partido. Confiar no amanhã e acreditar que a vida se resolverá sozinha, com a nossa ajuda e vigilância. Aprender a viver com a nova realidade que a vida nos colocou à frente e tentar minimizar, dentro do possível, a adaptação dos outros. Ter a consciência plena de que a morte não me assusta minimamente, mas que o desaparecimento daqueles que amo me aterroriza cada vez mais. Dar graças. Por tudo e tanto. Apesar do vazio, do cansaço, da frustração. Reconhecer aqueles com quem posso contar, que estão sempre presentes, incondicionalmente. Se há coisa que os baixos da vida nos permitem, é separar o trigo do joio. Traçar planos concretizáveis, a curto e médio prazo. O prazo longo fica para as conservas, que isto a vida dá muitas voltas e temos que estar atentos e disponíveis para a acompanharmos. Acreditar mais em mim mesma e nas minhas capacidades. Parar de apontar apenas os limites, que servem somente para que os tentemos superar. Valorizar cada vez mais os meus instintos, o meu 6º sentido. Dar o meu melhor, sempre. Ter a sabedoria necessária para saber que o meu melhor hoje é diferente do meu melhor amanhã. Não ter vergonha de fazer perguntas e responder sempre que sei a resposta. Não deixar de ser quem sou, apenas porque os outros dizem não faças isso, não vás por aí, não sejas assim. Fazer aquilo que me faz verdadeiramente feliz e realizada, mesmo não correspondendo às expectativas dos outros. Ganhar coragem para fazer algo que há muito desejo/planejo fazer. Dar graças. Por ser amada e por ter (quase) todos aqueles que amo à minha beira.

* Estou em contagem decrescente para o final do ano. Não por gostar especialmente do Reveillon ou por o ir festejar de forma efusiva, mas pela oportunidade de virar a página e começar de novo que um novo ano sempre nos dá. Gosto de páginas em branco.