28 de junho de 2014
27 de junho de 2014
26 de junho de 2014
Um milagre que aconteceu à nossa alma*
Sophia chegou-me através do cavalo-alado de Almada Negreiros que ilustrava a capa do livro Poesia I (Edições Ática, 1975, 3ºedição), que um dia encontrei pousado numa mesinha lá em casa. Tinha uns quatro ou cinco anos e ainda não sabia ler. Lembro-me de ficar largos minutos a olhar o desenho, encantada com a possibilidade de existir um cavalo com asas - o cavalo sempre foi o meu animal preferido e desde aquele dia fantasiei inúmeras aventuras, tendo esse ser mágico como companheiro ideal.
Uns dois ou três anos mais tarde, já sabendo juntar letras e o significado de muitas palavras, sentei-me uma tarde no banco namoradeiro da janela da sala de visitas, escondida atrás dos reposteiros compridos, e comecei a ler o livro do cavalo que nunca perdera de vista, pelo fim, como ainda hoje faço. No ponto onde o silêncio e a solidão/ Se cruzam com a noite e com o frio,/ Esperei como quem espera em vão,/ Tão nítido e preciso era o vazio., continua a ser um dos meus poemas preferidos e sei-o de cor desde aquela tarde, quando ainda não conseguia alcançar o pleno significado das palavras que ele contém.
Começava, assim, o meu encantamento pela poesia. Primeiro com Sophia, depois com tantos outros cuja musicalidade escrita me enchiam de vida e sonhos. A poesia tornava-se, para mim, tão necessária como o ar ou como a água. Era e é um alimento do qual não consigo prescindir, embora nem sempre o consuma em iguais quantidades.
Acho que já li toda a obra de Sophia. Todos os poemas, que poderiam ajudar a escrever a história da minha vida - há um poema para cada momento, quase; os contos e livros infantis, cujas personagens enriqueceram a minha infância e imaginação; e os (pouquíssimos) textos em prosa, que encerram em si o essencial de toda a sua poesia e mensagem ética e estética.
Estes dois textos são os meus preferidos e já aqui os postei anteriormente, assim como muitos poemas de Sophia:
Caminho da manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
- in Livro Sexto, 1962 -
Retrato de Mónica
Mónica é uma
pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família,
ser chiquíssima, ser
dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos
negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar
muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de
toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem
dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde,
levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser
sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo
exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho
conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura.
Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de
tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e
uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a
sol.
De facto,
para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica
teve que renunciar a três
coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é
oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é
oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra
mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso
aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os
dias.
Isto obriga
Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar
a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção.
Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são
úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas
as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem
tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem,
até os desgostos.
Os jantares
de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A
comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica
nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a
sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua
inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência
que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima
de mandarins e de
banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e
cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre
com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada
de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o
próprio Sol se enerva.
O marido de
Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste
marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o,
aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma
coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o
casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O
contrato que os une é indissolúvel,
pois o divórcio arruína as situações mundanas.
O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso
que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a
obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus
amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças
já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela
todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer
a fímbria dos
seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso
Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel,
cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos.
Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito,
que ela serve.
Pode-se
dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra
trazida por Mónica.
Há vários
meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela
estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois
com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente
sabe que Mónica é seriíssima toda
a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o
desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural
que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é
o seu maior apoio; mais firme fundamento do
seu poder.
- in Contos Exemplares, 1996 (29ª ed.) -
Devo a Sophia não apenas o gosto pela poesia, pela palavra escrita e pela sonoridade das palavras. Devo-lhe, acima de tudo, a forma como quero olhar o mundo e a maneira como viajo: de olhos bem abertos, pois só o olhar não mente.
Ontem, numa noite orvalhada ainda em rescaldo são joanino, a Casa da Música encheu-se para homenagear Sophia. Quase dez anos após a sua morte foi emocionante perceber como ela, nas palavras do seu filho Miguel, continua deslumbrantemente actual. As lágrimas e a voz embargada da minha mãe não o deixaram mentir. As minhas foram choradas no silêncio da casa adormecida, durante esse lento círculo azul do tempo que Sophia tanto gostava.
(*Maria Velho da Costa, sobre Sophia)
Subscrever:
Mensagens (Atom)