31 de dezembro de 2010

Seguir em frente.

Mais um ano novo que está à porta. É apenas uma data, um dia como os outros 365 (6). Mas é também a possibilidade de parar para pensar, recomeçar ou continuar. Ou isso tudo ao mesmo tempo. Não faço lista de resoluções, apesar de gostar de listas. Ajudam-me a estruturar pensamentos e organizar ideias e tempo. Neste fim de ano, apenas peço saúde e forças para continuar. A companhia dos meus e o seu bem-estar, assim como o de todas as outras pessoas. Nenhum homem é uma ilha e todos precisamos da ajuda das asas dos outros para conseguirmos voar.

Sejam felizes, façam por isso. Abracem-se, amam-se, beijem muito. Sorriam ainda mais, chorem o que for preciso.

Bom 2011 para todos. Que vos seja suave.

Agora é recomeçar.

Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

Affonso Romano de Sant'Anna

29 de dezembro de 2010

Rescaldo.








O melhor do meu Natal?! As pessoas. Aqueles que mais amo, os amigos verdadeiros. Foram eles os meus verdadeiros presentes. Embrulhar o cavalete para a A. pintar com o meu pai, ouvi-lo suspirar de cada vez que o mandava estar quieto, que assim não conseguia colar a fita-cola. As compras de última hora com a Micas aka my mum, a correria no supermercado, o carrinho a abarrotar de mercearias e afins, que davam para alimentar um batalhão. A mesa cheia de gente, os mesmos de sempre. A família alargada que apareceu para uma visita, para um abraço e um sorriso. Os sabores da memória que se repetem à mesa, todos os anos. A "chegada" do Pai Natal, porque a A. ainda merece que se perpetue a magia. A carinha de espanto da A. ao ver todos os presentes em frente à lareira, ouvi-la perguntar o qui cherá?!, de cada vez que pegava num embrulho e um obrigada, muuuuito obrigada, com um sorriso de orelha a orelha sempre que desvendava o mistério escondido pelos papéis e laços coloridos. Dois anos e meio de gente, a nossa mascote. Os mimos. Ter a minha mana à minha beira uma semana inteirinha. Os abraços. A mesa sempre posta com doces, chocolates, frutos secos, bolachinhas e torrões até aos Reis. Saber que no Ano Novo vamos estar todos juntos outra vez, como todas as semanas, ao longo do ano. 

Coisas más?! Claro que há. Mas essas não cabem aqui e são para ser ultrapassadas, apesar de nunca serem esquecidas. Não se trata de hipocrisia, mas sim de sobrevivência. De saber que esta vida é demasiado curta para nos perdermos em minudências, a maior parte das vezes sobrevalorizadas.Temos a obrigação de proporcionar aos mais novos um crescimento sereno, embora nunca desfasado da realidade. Mais do que uma sucursal doméstica de um qualquer centro comercial, devemo-lhes dias felizes, muito colo, conversas verdadeiras e sinceras e a certeza de um abraço, sobretudo nos momentos mais difíceis.

28 de dezembro de 2010

Rua de Camões

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

Inês Lourenço -