30 de julho de 2011

Nie wieder?!

Fez anteontem um ano que fomos a Auschwitz-Birkenau. Chovia torrencialmente e as temperaturas estiveram sempre abaixo dos 20 graus, apesar da época estival. Estávamos mal preparadas para o clima que se fazia sentir, habituadas que vínhamos a quase 40º à sombra. Ficamos alojadas em Cracóvia, num hostel que, ficamos a saber através de um senhor muito simpático a quem pedimos indicações na rua, debaixo de um temporal horrível e sem guarda-chuva e que nos levou quase até à porta (obrigada, ficamos-lhe eternamente gratas e lembramo-nos muito de si - bem haja!), havia sido um edifício prisional. Partimos na manhã seguinte, bem cedo, de comboio até Oświęcim. 
Como disse, chovia torrencialmente - praticamente não parou de chover o tempo todo que estivemos na Polónia e no dia em que fomos a Auschwitz-Birkenau, o S.Pedro não deu mesmo tréguas. Saímos de Cracóvia já completamente encharcadas até aos ossos, com um único guarda-chuva comprado na véspera, as nossas roupas mais quentes, sapatilhas de lona e parka semi-impermeável. Pouco mais de meia hora de comboio, um temporal desfeito lá fora, os vidros das carruagens embaciados. A floresta densa e ainda mais escura devido ao nevoeiro, em grande parte do caminho. Os nossos pés gelados e o coração apertadinho. 
Chegadas à estação, o único momento de descompressão do dia - na bilheteira, resolvemos pedir informação de como chegar ao Campo (sabíamos que não era longe). Do outro lado do vidro, uma quarentona loira-oxigenada, demasiado maquilhada e de unhas exageradamente compridas obriga-nos a soltar uma sonora gargalhada depois de, com alguma dificuldade, perceber o que queríamos saber. Com o verniz vermelho apontado na direcção da longa avenida que se perfilava em frente à estação, dispara-nos um seco Street, one kilometer. 
Lá fomos nós, sempre debaixo de chuva, de braço dado para melhor cabermos sob o nosso único guardo-chuva azul. À nossa frente, num passo apressado, como quem foge numa perseguição, um casalinho asiático, com uma indumentária ainda mais despropositada do que a nossa. Ela, de saia de algodão, Havaianas e um impermeável amarelo à turista, ele com uma parka de aspecto ainda menos impermeável do que as nossas. Resolvemos segui-los, traziam um mapa na mão e um pouco mais de convicção do caminho a seguir. A certa altura perdemo-los de vista, que isto de caminhar sob o mesmo guarda-chuva atrasa a marcha a qualquer um. No fim da avenida, que nos pareceu ter mais do que 1km, um aglomerado de casas, barracões e cruzamentos deixaram-nos confusas e sem saber por onde ir a seguir. Junto a uma pequena mercearia, uma senhora de caracóis brancos iguais aos da Frau B carregava uns sacos com compras, protegida por uma gabardine cinzenta e um lenço na cabeça. Não se avistando mais ninguém, resolvi perguntar-lhe se falava inglês. Respondeu-me em polaco, pelo que havia de tentar outra forma de comunicação. De repente, lembrei-me de lhe perguntar em alemão qual o caminho a seguir até ao Campo. Olhou-me de uma forma que me deixa confrangida até hoje - que memórias uma língua aviva numa pessoa, que significado teria para aquela senhora? Respondeu-me num alemão quase perfeito, com uma pronúncia que me fez lembrar as gentes da Baviera. Apressei-me a explicar que éramos portuguesas, o que a fez esboçar um sorriso. Nunca parou de caminhar enquanto falávamos. Um corpo frágil, à chuva, carregando quase o equivalente ao seu peso em compras de mercearia. Não aceitou ajuda para carregar os sacos e custa-me não ter insistido mais. Lembro-me de olhar para trás uma ou duas vezes e vê-la cambalear pelo passeio instável. 
Seguimos as indicações e rapidamente avistamos a entrada do Campo. Os nossos corações batiam descompassadamente e a respiração tornava-se ofegante à medida que nos aproximávamos do que é hoje um Museu e um Memorial em homenagem a quantos ali tiveram que sobreviver em condições inenarráveis e de todos os que perderam a vida em nome de algo que não tem explicação - ou não deveria ter. 
Fizemos a visita guiada em inglês, misturadas num grupo bastante heterogéneo de visitantes. Antes de se dar entrada no Campo, é possível assistir a um documentário sobre o mesmo, uma espécie de introdução dolorosa àquilo que nos espera, com as informações mais importantes para uma melhor compreensão de tudo o que se passou e, consequentemente, da visita em si. Foi o primeiro murro no estômago, às 10.30h da manhã. Não que nunca tivéssemos visto aquelas imagens, que não soubéssemos das histórias e da História daquele período e de tudo aquilo que ali se viveu. Acontece que o "quanto mais longe da vista mais longe do coração" tem o seu quê de verdade e assistir àquele documentário ali, bem onde grande parte do terror tinha acontecido, é algo que só quem vive e ali vai consegue perceber. 
Passamos o resto da visita sempre de braço dado e quase em silêncio permanente, apenas interrompido quando nos surgia alguma dúvida ou sentíamos necessidade de comentar alguma coisa. Estávamos encharcadas, com frio, cansadas da viagem e do peso das mochilas às costas. Sentíamo-nos esmagadas por tudo e tanto que estávamos a viver, o significado daquele lugar, as palavras emocionadas da nossa guia, a nossa cabecinha a tentar imaginar o que teria sido viver ali, com aquelas condições.  
Inimaginável, foi esta a palavra que mais repetimos o tempo todo. Ninguém, por mais que tente pôr-se na pele de todos aqueles que ali foram obrigados a viver, consegue sequer chegar perto do que realmente aconteceu, do que sentiram aquelas pessoas, quais os pensamentos que lhes ia na cabeça todos os dias. Sentímo-nos pequeninas e frívolas por nos estarmos a queixar da chuva, do frio, da roupa molhada, do cansaço. Sentimos as lágrimas embargarem-nos a voz por várias vezes e o coração estilhaçado o tempo todo. 
Nós, que ao longo de um mês de viagem tiramos centenas de fotografias, fomos incapazes sequer de pegar na máquina naquele dia. Para quê, com que objectivo?, perguntamo-nos. Nem uma?, perguntaram-nos. Mas para que serviria uma fotografia nossa em Auschwitz-Birkenau? Para provar a nossa presença? Nós sabemos que estivemos lá e as memórias e as sensações daquele dia ficarão para sempre gravadas em nós. Quanto ao resto das pessoas, se ainda não foram lá, acho que é daqueles sítios de visita obrigatória, apesar de não ser nem fácil nem prazeroso. Os que não tiverem oportunidade de ir, há mil e uma imagens do lugar, mil e um relatos e documentos que atestam e comprovam o horror que ali se viveu. 

Ao longo dos últimos dias tenho pensado muito na nossa visita ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Tenho recordado as aulas de História, de Alemão e de Filosofia. Vêm-me constantemente à memória os relatos daqueles que presenciaram o terror ou que carregam no seu ADN e no seu historial familiar as recordações horríveis de um período da História mundial - e da Europa em particular, que tantas cicatrizes deixou, aos mais variados níveis. 
Ao longo de toda esta semana, as notícias que nos chegaram da Noruega e do duplo atentado levado a cabo por Anders Behring Breivik, fizeram-me repensar a quase certeza de que ninguém na Europa quer começar outra guerra, que o que se passou é impossível de repetir, que estamos todos mais do que informados, que as sociedades evoluíram no bom sentido, que o projecto europeu, apesar das suas falhas e pés de barro, é suficientemente consistente e um dos garantes da paz e da solidariedade entre os seus povos. Contudo, a mente alucinada de uma só pessoa (a confirmar-se que agiu mesmo sozinho), conseguiu pôr todas as minhas certezas em causa. Um único terrorista - sim, porque é de terrorismo que se trata, branco, louro, europeu (tentem lá agora dizer que o Mal está nos outros, naqueles que são diferentes de nós), foi capaz de me fazer recuar várias vezes no tempo e recordar relatos de terror que sempre pensei não voltarem a ser passíveis de acontecer aqui tão perto de todos nós. 

Assusta-me esta capacidade do ser humano (?) se transformar na personificação do Mal, no seu sentido mais profundo e doloroso. O que levará um ser humano a atentar contra a vida de outro, de forma tão grotesca e gratuita?
Queria poder afirmar que o Holocausto jamais se irá repetir, mais infelizmente basta-me assistir a um noticiário para o ver repetido diariamente, sob as mais variadas formas e, para arrepio meu, das maneiras mais camufladas.

25 de julho de 2011

The past is a foreign country.








* They do things differently there (L. P. Hartley)

A caixa haviam-na trazido há já algum tempo da casa dos avós (meus, pais do meu pai). Permanecia fechada, intocada, como a deixaram não sabemos bem há quantos anos. Hoje, a Micas aka my mum, encheu-se de coragem e disse vamos abri-la! 

Foi uma emoção sem fim, o regresso a um passado que conhecemos mal, do qual nos chegaram relatos um pouco distantes e nem sempre precisos. A pequena caixa de madeira com uma placa dourada onde se lê Alexandrina, o nome da minha bisavó, trouxe-nos memórias antigas e fez-nos sentir um pouco mais próximas dos meus bisavós, pais da minha avó paterna, que nenhuma das duas conheceu, por terem falecido muito novos. Dizem que o meu avô morreu de desgosto e de saudades da mulher da sua vida, que havia falecido pouco tempo antes. Gosto de imaginar como seria aquela relação, aquele amor que cruzou oceanos por várias vezes, aquele casal que fez fortuna no Brasil e que depois regressou à Pátria, por querer educar a única filha na terra que os viu nascer.

Comoveu-me, acima de tudo, o cartão em que o meus bisavós anunciam o nascimento de Carmen, a minha avó, ainda sem saberem a vida dura que a esperava após a sua morte, numa altura crucial da vida dela.

Aquela caixa é um verdadeiro tesouro, feito de pequenas relíquias: fotografias, um estojo de costura, canetas de pena, um saco com moedas antigas de Portugal e do Brasil (a Micas diz que estamos ricas!), um exemplar do Comércio do Porto, com a data de 3 de Maio de 1923, que tem um pequeno papel cosido com o recado este jornal não se rasga. A caligrafia talvez seja da minha avó, não conseguimos precisar.

O sol começava a baixar e a sala era inundada por aquela luz dourada de final de tarde estival. Por várias vezes me vieram as lágrimas aos olhos. Tudo aquilo me parecia um filme. A minha mãe com a caixa no colo, os carrinhos de linha, a caixa de papelão da Pharmacia Leal, no Pico dos Regalados, os botões de punho do bisavó Manoel.

De repente apercebi-me que toda eu cabia dentro daquela caixa. Inteirinha.