Fez anteontem um ano que fomos a Auschwitz-Birkenau. Chovia torrencialmente e as temperaturas estiveram sempre abaixo dos 20 graus, apesar da época estival. Estávamos mal preparadas para o clima que se fazia sentir, habituadas que vínhamos a quase 40º à sombra. Ficamos alojadas em Cracóvia, num hostel que, ficamos a saber através de um senhor muito simpático a quem pedimos indicações na rua, debaixo de um temporal horrível e sem guarda-chuva e que nos levou quase até à porta (obrigada, ficamos-lhe eternamente gratas e lembramo-nos muito de si - bem haja!), havia sido um edifício prisional. Partimos na manhã seguinte, bem cedo, de comboio até Oświęcim.
Como disse, chovia torrencialmente - praticamente não parou de chover o tempo todo que estivemos na Polónia e no dia em que fomos a Auschwitz-Birkenau, o S.Pedro não deu mesmo tréguas. Saímos de Cracóvia já completamente encharcadas até aos ossos, com um único guarda-chuva comprado na véspera, as nossas roupas mais quentes, sapatilhas de lona e parka semi-impermeável. Pouco mais de meia hora de comboio, um temporal desfeito lá fora, os vidros das carruagens embaciados. A floresta densa e ainda mais escura devido ao nevoeiro, em grande parte do caminho. Os nossos pés gelados e o coração apertadinho.
Chegadas à estação, o único momento de descompressão do dia - na bilheteira, resolvemos pedir informação de como chegar ao Campo (sabíamos que não era longe). Do outro lado do vidro, uma quarentona loira-oxigenada, demasiado maquilhada e de unhas exageradamente compridas obriga-nos a soltar uma sonora gargalhada depois de, com alguma dificuldade, perceber o que queríamos saber. Com o verniz vermelho apontado na direcção da longa avenida que se perfilava em frente à estação, dispara-nos um seco Street, one kilometer.
Lá fomos nós, sempre debaixo de chuva, de braço dado para melhor cabermos sob o nosso único guardo-chuva azul. À nossa frente, num passo apressado, como quem foge numa perseguição, um casalinho asiático, com uma indumentária ainda mais despropositada do que a nossa. Ela, de saia de algodão, Havaianas e um impermeável amarelo à turista, ele com uma parka de aspecto ainda menos impermeável do que as nossas. Resolvemos segui-los, traziam um mapa na mão e um pouco mais de convicção do caminho a seguir. A certa altura perdemo-los de vista, que isto de caminhar sob o mesmo guarda-chuva atrasa a marcha a qualquer um. No fim da avenida, que nos pareceu ter mais do que 1km, um aglomerado de casas, barracões e cruzamentos deixaram-nos confusas e sem saber por onde ir a seguir. Junto a uma pequena mercearia, uma senhora de caracóis brancos iguais aos da Frau B carregava uns sacos com compras, protegida por uma gabardine cinzenta e um lenço na cabeça. Não se avistando mais ninguém, resolvi perguntar-lhe se falava inglês. Respondeu-me em polaco, pelo que havia de tentar outra forma de comunicação. De repente, lembrei-me de lhe perguntar em alemão qual o caminho a seguir até ao Campo. Olhou-me de uma forma que me deixa confrangida até hoje - que memórias uma língua aviva numa pessoa, que significado teria para aquela senhora? Respondeu-me num alemão quase perfeito, com uma pronúncia que me fez lembrar as gentes da Baviera. Apressei-me a explicar que éramos portuguesas, o que a fez esboçar um sorriso. Nunca parou de caminhar enquanto falávamos. Um corpo frágil, à chuva, carregando quase o equivalente ao seu peso em compras de mercearia. Não aceitou ajuda para carregar os sacos e custa-me não ter insistido mais. Lembro-me de olhar para trás uma ou duas vezes e vê-la cambalear pelo passeio instável.
Seguimos as indicações e rapidamente avistamos a entrada do Campo. Os nossos corações batiam descompassadamente e a respiração tornava-se ofegante à medida que nos aproximávamos do que é hoje um Museu e um Memorial em homenagem a quantos ali tiveram que sobreviver em condições inenarráveis e de todos os que perderam a vida em nome de algo que não tem explicação - ou não deveria ter.
Seguimos as indicações e rapidamente avistamos a entrada do Campo. Os nossos corações batiam descompassadamente e a respiração tornava-se ofegante à medida que nos aproximávamos do que é hoje um Museu e um Memorial em homenagem a quantos ali tiveram que sobreviver em condições inenarráveis e de todos os que perderam a vida em nome de algo que não tem explicação - ou não deveria ter.
Fizemos a visita guiada em inglês, misturadas num grupo bastante heterogéneo de visitantes. Antes de se dar entrada no Campo, é possível assistir a um documentário sobre o mesmo, uma espécie de introdução dolorosa àquilo que nos espera, com as informações mais importantes para uma melhor compreensão de tudo o que se passou e, consequentemente, da visita em si. Foi o primeiro murro no estômago, às 10.30h da manhã. Não que nunca tivéssemos visto aquelas imagens, que não soubéssemos das histórias e da História daquele período e de tudo aquilo que ali se viveu. Acontece que o "quanto mais longe da vista mais longe do coração" tem o seu quê de verdade e assistir àquele documentário ali, bem onde grande parte do terror tinha acontecido, é algo que só quem vive e ali vai consegue perceber.
Passamos o resto da visita sempre de braço dado e quase em silêncio permanente, apenas interrompido quando nos surgia alguma dúvida ou sentíamos necessidade de comentar alguma coisa. Estávamos encharcadas, com frio, cansadas da viagem e do peso das mochilas às costas. Sentíamo-nos esmagadas por tudo e tanto que estávamos a viver, o significado daquele lugar, as palavras emocionadas da nossa guia, a nossa cabecinha a tentar imaginar o que teria sido viver ali, com aquelas condições.
Inimaginável, foi esta a palavra que mais repetimos o tempo todo. Ninguém, por mais que tente pôr-se na pele de todos aqueles que ali foram obrigados a viver, consegue sequer chegar perto do que realmente aconteceu, do que sentiram aquelas pessoas, quais os pensamentos que lhes ia na cabeça todos os dias. Sentímo-nos pequeninas e frívolas por nos estarmos a queixar da chuva, do frio, da roupa molhada, do cansaço. Sentimos as lágrimas embargarem-nos a voz por várias vezes e o coração estilhaçado o tempo todo.
Nós, que ao longo de um mês de viagem tiramos centenas de fotografias, fomos incapazes sequer de pegar na máquina naquele dia. Para quê, com que objectivo?, perguntamo-nos. Nem uma?, perguntaram-nos. Mas para que serviria uma fotografia nossa em Auschwitz-Birkenau? Para provar a nossa presença? Nós sabemos que estivemos lá e as memórias e as sensações daquele dia ficarão para sempre gravadas em nós. Quanto ao resto das pessoas, se ainda não foram lá, acho que é daqueles sítios de visita obrigatória, apesar de não ser nem fácil nem prazeroso. Os que não tiverem oportunidade de ir, há mil e uma imagens do lugar, mil e um relatos e documentos que atestam e comprovam o horror que ali se viveu.
Ao longo dos últimos dias tenho pensado muito na nossa visita ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Tenho recordado as aulas de História, de Alemão e de Filosofia. Vêm-me constantemente à memória os relatos daqueles que presenciaram o terror ou que carregam no seu ADN e no seu historial familiar as recordações horríveis de um período da História mundial - e da Europa em particular, que tantas cicatrizes deixou, aos mais variados níveis.
Ao longo de toda esta semana, as notícias que nos chegaram da Noruega e do duplo atentado levado a cabo por Anders Behring Breivik, fizeram-me repensar a quase certeza de que ninguém na Europa quer começar outra guerra, que o que se passou é impossível de repetir, que estamos todos mais do que informados, que as sociedades evoluíram no bom sentido, que o projecto europeu, apesar das suas falhas e pés de barro, é suficientemente consistente e um dos garantes da paz e da solidariedade entre os seus povos. Contudo, a mente alucinada de uma só pessoa (a confirmar-se que agiu mesmo sozinho), conseguiu pôr todas as minhas certezas em causa. Um único terrorista - sim, porque é de terrorismo que se trata, branco, louro, europeu (tentem lá agora dizer que o Mal está nos outros, naqueles que são diferentes de nós), foi capaz de me fazer recuar várias vezes no tempo e recordar relatos de terror que sempre pensei não voltarem a ser passíveis de acontecer aqui tão perto de todos nós.
Assusta-me esta capacidade do ser humano (?) se transformar na personificação do Mal, no seu sentido mais profundo e doloroso. O que levará um ser humano a atentar contra a vida de outro, de forma tão grotesca e gratuita?
Queria poder afirmar que o Holocausto jamais se irá repetir, mais infelizmente basta-me assistir a um noticiário para o ver repetido diariamente, sob as mais variadas formas e, para arrepio meu, das maneiras mais camufladas.