1
Podias ensinar à mão
outra arte,
essa de atravessar o vidro;
podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;
ou então ser água,
onde, de tanto olhá-las,
as estrelas caíam.
2
O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.
Há um cavalo próximo do silêncio,
uma pedra fria sobre a boca,
pedra cega de sono.
Amar-te-ia se viesses agora
ou inclinasses
o teu rosto sobre o meu tão puro
e tão perdido,
ó vida
5
Claro que os desejas, esses corpos
onde o tempo não enterrou ainda
os cornos fundo — não é o desejo
o amigo mais íntimo do sol?
Que os desejas, como se cada um
deles fosse o último, último corpo
que o teu corpo tivesse para amar.
6
A tarde sacudiu as suas crinas,
as crianças demoram-se nos espelhos,
um amigo começa no verão,
no íntimo despir das suas luzes.
7
Conhecias o verão pelo cheiro,
o silêncio antiquíssimo
do muro, o furor das cigarras,
inventavas a luz acidulada
a prumo, a sombra breve
onde o rapazito adormecera,
o brilho das espáduas.
É o que te cega, o sol da pele.
8
O sorriso.
O sorriso aberto
contra o muro.
Exactamente
como as ervas,
é muito antigo.
E sobre as ervas
e o muro
debruça-se no caminho.
Quem o arranca,
e levará consigo?
9
Outra vez o pátio vidrado da manhã.
Vais surgir e dizer: eu vi um barco.
Era quando aos lábios me chegava
a porosa argila doutros lábios.
Estava então a caminho de ser ave.
10
A manhã parada.
O azul.
A fundura da pupila.
Não é ainda a sede,
a matilha,
a febre.
O tronco nu —
a luz vacila.
12
Tocar-te a pele
o pulso aberto
ao gume do olhar.
Que seja essa
a casa, a estrela
do primeiro dia.
Rosa inflamável,
boca do ar.
13
Aqui me tens, conivente com o sol
neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.
16
Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.
Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar.
27
Vacilantes perdem-se agora os dedos,
o mar é longe, vai-se a voz quebrando,
para morrer vai sendo tarde.
Não duvides: sou essa árvore,
essa alegria só prometida às aves.
36
Pela manhã é que eu iria
pela última vez
Iria sem saber onde a estrada leva.
E a sede.
45
Chove, é o deserto, o lume apagado,
que fazer destas mãos, cúmplices do sol?
- Eugénio de Andrade -
2 comentários:
Eugénio, mãos da minha alma...foi contigo que o descobri e é a ele que sempre volto agora. Tão bem descobrir que também tu voltas ás coisas iniciais que nos juntaram e nos levaram a partilhar tanto!
:)
Volto sempre às coisas essenciais, assim como voltarei sempre a ti.
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