8 de outubro de 2014
Somatório estival #2
Jardins do Palácio de Cristal, Porto - Verão de 2014
A chuva dança com o vento junto à minha janela, o país tem várias zonas sob aviso laranja e a meteorologia volta a estar na ordem do dia, não apenas nos serviços noticiosos como nas conversas de café, nos intervalos para cigarro e nas viagens apinhadas nos transportes públicos.
Cá dentro, procuro arrumar a vida e tento encaixar horários e acertar agendas, como se de um puzzle se tratasse. O Verão já lá vai, as ruas da cidade começam a cheirar a castanhas assadas e os dias notam-se bem mais curtos. Tudo começa a pedir um certo recolhimento, mas a mim ainda me apetece luz, sol e muito ar livre - nem que seja através de fotografias.
7 de outubro de 2014
Come mi manca questa ragazza*
Paris, há demasiado tempo atrás.
Ela faz-me falta, muita. Todos os dias e das mais diversas formas. Há amizades assim, que sobrevivem à distância, às conversas e às partilhas diárias. Mesmo que só consigamos pouco mais do que um café por ano (os deuses hão-de ser justos e começar a trabalhar a nosso favor nesse aspecto!), a S. é daquelas pessoas para sempre.
Gosto do carinho que tenho por ela. É daqueles sentimentos bons que nos aquecem a alma. Vibro com as conquistas que vai alcançando, entristeço-me quando sei que as coisas não correm como queria, preocupo-me quando a sinto mais em baixo. Nem sempre sou a melhor das amigas e já lhe falhei muito - a vida não é uma linha recta e eu perco-me demasiado nas curvas, não conseguindo, por vezes, focar-me no que é verdadeiramente importante. Talvez não lhe diga o suficiente o quanto gosto dela, os dias vão-se somando impiedosamente e vamos sendo engolidos por esta montanha-russa constante que é as nossas vidas. No entanto, estou aqui e estarei sempre. De preferência a vê-la sorrir. Aquele sorriso enorme que enche o mundo - e o mundo é dela.
25 de setembro de 2014
A série do (meu) Verão.
Amo tudo. Vi a primeira temporada ainda durante o Inverno e as novas aventuras da segunda temporada vieram dar um colorido diferente a muitas horas do meu Verão.
Ri, chorei, chorei a rir e aguardo ansiosamente o que a terceira fornada de episódios nos reservam.
Se ainda não viram. não sabem o que andam a perder. Corram, pá!
Love them all!
23 de setembro de 2014
Somatório estival #1
Vila do Conde - Verão de 2014
O Verão que ontem terminou não foi um Verão prodigioso, em muitos aspectos, a começar pelo clima. Foram meses algo atípicos, São Pedro falhou-nos em muitos pontos e os meses foram passados na expectativa de dias mais quentes, soalheiros e luminosos.
Paralelamente, a minha vida continuava em suspenso e também eu aguardava dias melhores. Setembro chegou com uma esperança renovada e a possibilidade de um futuro um pouco mais estável, mesmo que a curto prazo - para já.
No entanto, nem tudo foram dias cinzentos durante esta última época estival. Ficaram muitas lembranças boas e dias felizes. Partilharei aqui alguns desses momentos, aqueles que mais me ajudaram a recarregar baterias, através de pequenos instantes fotográficos. Para recordar ao serão, como diria a minha avó Aninhas.
Outonando*
Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Uma flecha cravada no Outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
Que a minha boca recusa. É outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.
- Joaquim Pessoa -
O Outono foi-me uma aprendizagem longa e complicada, assim como aquelas matérias de escola que simplesmente não conseguia apreender e encaixar. O Outono, durante demasiado tempo, não me fazia sentido. Tudo nele me era estranho, adverso e significava o fim dos dias quentes e longos de Verão, a minha estação do ano - e é minha não apenas por ser filha de Agosto, mas, acima de tudo, por respirar infinitamente melhor a partir da Primavera e ser mais eu mesma durante os meses estivais. Sem máscaras ou capas. Como se as camadas infindáveis de roupa que somos obrigados a usar durante a época mais fria do ano me servissem de armadura e me ajudassem a esconder-me um pouco mais do mundo.
De há uns anos para cá, no entanto, o Outono deixou de ser um sacrifício e passou mesmo a ser uma época ansiada, passadas as primeiras semanas de Setembro. Consigo observar e entender todo o seu esplendor. Aprendi a vivê-lo o melhor possível e a abraçar tudo de bom que tem para nos oferecer. Já não me é tão estranho e desconfortável. Até mesmo os dias graníticos de Inverno me são menos pesados, agora que o frio e sobretudo a falta de luz, me são menos difíceis de suportar.
O Verão, contudo, fica-me colado à pele e à alma o ano inteiro. Vou revivendo instantes e momentos felizes a cada raio de sol ou quando mergulho bem fundo na minha memória afectiva, a fim de ultrapassar dias mais cinzentos e gelados. Revejo fotografias dos dias estivais e das aventuras, mais ou menos pequenas, que vou coleccionando durante os dias mais longos e leves do ano, para ir recordando sempre que o coração aperta de saudades. Faço flashbacks mentais quando tudo se torna demasiado para a minha pele e os meus ossos aguentarem sem dor e esforço. Fecho os olhos e imagino-me na praia, naquela hora dourada de um fim de tarde quente e com cheiro a maresia, gelados e língua-da-sogra.
*Este post foi agendado para publicação, simbolicamente, às 3h29 desta madrugada, o momento exacto do Equinócio de Outono. Marca o início de uma nova estação e de um novo header aqui no blogue - a pena, por sua vez, vem simbolizar uma nova fase na minha vida, um recomeço que se quer mais leve, mais colorido, bem como um desejo de voar cada vez mais longe.
10 de setembro de 2014
No ciclo eterno das mudáveis coisas*
Porto, Amarante, Lisboa, Angeiras - Verão 2014
Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.
- Clarice Lispector, in Um sopro de vida -
Regressei, como prometido, com a luz dourada de Setembro. Volto com a esperança renovada, com novidades e uma vontade imensa de sugar a vida até ao tutano. O medo existirá sempre, assim como o meu mar, eterno porto de abrigo e guardião de sonhos. É nele que deposito todas as minhas angústias, com a certeza de receber em troca a calma necessária para seguir em frente.
Falta-me ainda o meu Reino Maravilhoso, neste Verão que se vai despedindo a cada pôr-do-sol dourado. Se o mar é a minha bússola, Trás-os-Montes é o meu astrolábio - ambos são essenciais ao norteamento da minha vida.
*Ricardo Reis
1 de julho de 2014
Colhe o dia, porque és ele*
Foz do Douro
Até já. Vou encher-me de mar, de sol, tempo, livros, música, filmes noite dentro, melancia, gelados, granizados e abraços. Vou arrumar gavetas, reais e mentais. Vou destralhar e descomplicar a (minha) vida. O futuro quer-se leve, o caminho avizinha-se longo, ainda que esperançoso. Vou preparar-me para o salto - não no vazio, mas no sonho, esse, que não me larga o consciente e o inconsciente.
Volto com a luz dourada de Setembro. Menos enigmática, mais verdadeira e autêntica, que os medos serão todos deixados no fundo do mar.
*Ricardo Reis
29 de junho de 2014
☀︎
Sou filha do mar e dos dias longos de Agosto. Vi o mundo dez dias depois do que era suposto, embalada que estava pelas ondas do mar frio e batido do norte, naquela mesma praia que iria povoar todo o imaginário da minha infância - Miramar. A minha mãe fez praia até à última, saltando ondas na zona da rebentação e deixando que muitas se desfizessem na sua barriga cheia de mim, para grande preocupação do meu tio Alfredo, que dizia que eu ia nascer ali mesmo, no sítio onde o mar enrola a areia, num abraço que tão bem conheço. Sou também filha do luar quente que cobre com um manto aveludado as terras transmontanas nas noites infinitas dos meses estivais - saí do mar para os montes, cheirando aquele aroma inconfundível que só quem se atreve para lá do Marão reconhece, com apenas quinze dias de vida. Atravessei os montes num 2Cavalos, numa viagem que marcaria irremediavelmente a bifurcação do meu coração: não vivo sem o mar e sou mais eu naquelas terras altas que teimam em beijar as estrelas mesmo quando o céu se enegrece, deixando-nos com a sensação de estarmos a ser sufocados pelo testo do mundo.
Talvez por tudo isto sou incomparavelmente mais plena e mais tranquilamente feliz nos dias quentes, quando estou perto do mar ou naquele recanto a nordeste do país. Gosto do calor moleza que se nos cola à pele e à alma, deixando-me mais leve como a roupa que me cobre o corpo. Gosto de lavar pátios e varandas em noites quentes, molhando os pés com a mangueira e recordando os banhos da minha infância no jardim de casa dos avós. Gosto de melancia gelada a qualquer hora do dia ou da madrugada, em talhadas generosas ou em bolas de sorvete. Gosto da luz dos dias de Verão, daquela película quente que cobre o horizonte e do ar abafado das cidades quase desertas. Gosto de poder andar de havaianas ou sandálias quase o tempo todo, de sentir o sol e o vento na pele mais sensível dos pés. Gosto de dias inteiros na praia, intervalados nas horas proíbitivas de calar com sestas à sombra e jogos de cartas. Gosto de ler deitada na areia quando a praia está apenas suficientemente cheia, de forma a que o ruído em volta não me desconcentre a leitura. Gosto de chá de gengibre gelado com hortelã, de refresco de café e limão e de limonada acabada de fazer, adoçada com açúcar amarelo. Gosto de cerejas mergulhadas em cubos de gelo, de meloa como entrada de uma refeição, de ameixas de todas as qualidades e de melões bem maduros. Gosto de colher framboesas, amoras e groselhas e de apanhar uma barrigada delas, ainda quentes e a saber a sol e terra. Gosto de andar descalça, em todo o lado, de sentir o frio da tijoleira, a humidade da relva, a areia a escaldar, a terra seca, o chão dos pátios e alpendres banhados de sol. Gosto de dormir de janela aberta a noite inteira, da brisa suave que vai chegando com a madrugada. Gosto do facto de me apetecer tomar banho a qualquer hora do dia e da noite, sem receio do frio que sei que não vou sentir. Gosto do tonzinho dourado que a minha pele adquire lá para finais de Setembro, apenas aquela leve pincelada de pós terra e dourados, independentemente do número de dias em que tiver feito praia. Sou filha do sol, mesmo que o meu tom de pele e a cor dos meus olhos aconselhassem climas mais nórdicos.
Nestes dias mais soalheiros e compridos, o meu raciocínio fica mais lesto, a minha imaginação mais fértil e a minha capacidade de concentração mais alargada. Por muito que me tenha habituado a gostar do Outono e do Inverno - e foi um esforço conseguido, sendo já capaz de desfrutar tudo o que de bom essas duas estações do ano nos têm para oferecer, serei sempre uma criatura mais solar, cujas baterias só se recarregam plenamente entre Abril e Outubro. No resto do tempo, faz-me falta a luz nas suas várias tonalidades, como só os dias de Primavera e Verão têm. Morro de saudades do cheiro das flores e da terra, do canto dos pássaros, das borboletas coloridas dos jardins. Sinto falta dos passeios à beira-mar nas noites insuportavelmente quentes, quando só a brisa marítima nos consegue refrescar.
Nos verões da minha infância, tenho quase a certeza que os relógios todos paravam. Os dias eram mais lentos e a nossa noção de tempo quase uma sensação infinita. A canícula e a terra agarrada à pele eram lavadas em tanques de rega, com água de furos e muitas brincadeiras à mistura, numa alegria contagiante que nenhuma piscina conseguia igualar. Os piqueniques, na praia, à beira-rio ou onde a vontade ditasse eram uma constante, faziam-se farnéis e enchiam-se geleiras com uma precisão e rapidez quase militar, embora tudo o resto fosse de uma descontração que ainda hoje me comove. Estendiam-se mantas à sombra de oliveiras, de sobreiros e de figueiras. Faziam-se fogueiras para churrascos improvisados onde fosse preciso ou para fazer batatas à espanhola num panelão enorme, capaz de alimentar uma messe inteira. Saíamos de casa de manhã e aparecíamos à hora das refeições para voltar a desaparecer logo de seguida e só retornar com a lua bem alta ou íamos telefonando de casa de vizinhos e amigos a avisar que comíamos por ali mesmo, que não contassem connosco até à noitinha. Não tínhamos telemóveis. Se por acaso ninguém atendesse o telefone fixo, havia um voluntário forçado que ia dar o recado ao primeiro adulto que encontrasse. Improvisávamos Jogos Sem Fronteiras nas ruas, nos pátios ou nas hortas, dependendo do que estivesse mais à mão. Comíamos casadinhos de queijo e marmelada, pão com tabletes de chocolate que a tia Maria trazia no fundo das malas quando regressava da França, fruta colhida directamente das árvores e legumes colhidos por nós na horta. Andávamos de tractor em condições de segurança que poriam os cabelos em pé a muita gente nos dias que correm, mas não éramos inconscientes e sabíamos que os mais velhos estavam responsáveis pelos mais novos e éramos um por todos e todos por quem precisasse de nós. Dormíamos sestas deitados em cima de sacos de batatas e fardos de feno, nas escadas da tia Freire quando o sol virava para a curtinha ou em qualquer lugar onde a sombra fosse maior que o nosso corpo. A avó preparava-nos lanches no alpendre, bebíamos leite frio com groselha ou Suchard Express em copos altos e comíamos bolachas compradas nas Paquitas, em Alcañices. Havia muitos incêndios e sabíamos o significado dos vários toques da sirene dos bombeiros de cor. Íamos de jipe ou de tractor ajudar a apagar os fogos, levávamos leite, água, bolachas e fruta para os bombeiros exaustos. Corríamos as festas populares e romarias de todas as terrinhas em volta, não perdíamos uma procissão, um fogo-de-artifício ou um bailarico. Comíamos Posta à Mirandesa assada na brasa debaixo de um sol implacável e um bailado de moscas, terra seca e palha que paira pelo ar do planalto mirandês nos dias quentes de Setembro, ignorando todas as regras de higiene, numa das mais bonitas romarias que conheço - as festas em honra de Nossa Senhora do Naso ou o Naso, simplesmente. Encenávamos espectáculos de variedades ao fundo da rua cortada temporariamente ao trânsito para esse efeito: o palco era o largo entre a casa do Tomé e da tia Freire, o pano de cena uns lençóis velhos emprestados pelas avós, o guarda-roupa eram todos os disfarces de Carnaval de anos anteriores e os assaltos consentidos a guarda-fatos e baús da família, a plateia era composta por bancos de traves de madeira feitos por nós, assim como o Bar, onde o Tó vendia, ao intervalo, o café, a limonada, as cervejas e os bolinhos feitos entre todos. O público crescia de ano para ano e chegamos mesmo a ter quem viesse de fora propositadamente para nos ver actuar. A receita da bilheteira e do bar era depois canalizada para fins vários: um ano enfeitamos a igreja toda com flores muito bonitas para as festas da vila, noutro mandámos fazer uma tampa para o poço que há logo à entrada da Capela de Pereiras e onde já várias pessoas tinham caído, nos restantes foi entregue à paróquia para o que mais fizesse falta e no último oferecemos um jantar a todas as pessoas que nos tinham ajudado ao longo de tantos anos de aventuras, maluquices e sonhos alcançados.
Sou filha do Verão - do primeiro, que me viu nascer e de todos os outros que se seguiram e me tatuaram a personalidade, o feitio, as emoções e o pensamento, de uma forma que mais nenhuma outra época do ano conseguiu. Serei sempre daquele mar frio de Miramar, das rochas onde raspávamos lapas para o arroz que jantaríamos à noite, das pocinhas onde dei as primeiras braçadas, das algas com que o avô me cobria e massajava as costas, dos gelados, das batatas fritas e das línguas da sogra que comi naquele areal. Os concursos de capitais de países do mundo inteiro, a Barca Chica Chica cantada vezes sem conta, as viagens para a praia no Santana descapotável, as jipadas por entre montes e vales mais ou menos desconhecidos e todas as memórias estivais farão para sempre parte da minha geografia sentimental e moldaram-me de uma maneira perpétua, contribuindo, nada paradoxalmente, para a minha forma de ver o mundo, para o meu espírito de eterna viajante e para uma abertura de pensamento que tento não descurar nunca - o ser humano é tão profundo, rico e diversificado como as águas dos oceanos e quero mergulhar cada vez mais nesse mundo riquíssimo que somos cada um de nós.
Sou filha do Verão - do primeiro, que me viu nascer e de todos os outros que se seguiram e me tatuaram a personalidade, o feitio, as emoções e o pensamento, de uma forma que mais nenhuma outra época do ano conseguiu. Serei sempre daquele mar frio de Miramar, das rochas onde raspávamos lapas para o arroz que jantaríamos à noite, das pocinhas onde dei as primeiras braçadas, das algas com que o avô me cobria e massajava as costas, dos gelados, das batatas fritas e das línguas da sogra que comi naquele areal. Os concursos de capitais de países do mundo inteiro, a Barca Chica Chica cantada vezes sem conta, as viagens para a praia no Santana descapotável, as jipadas por entre montes e vales mais ou menos desconhecidos e todas as memórias estivais farão para sempre parte da minha geografia sentimental e moldaram-me de uma maneira perpétua, contribuindo, nada paradoxalmente, para a minha forma de ver o mundo, para o meu espírito de eterna viajante e para uma abertura de pensamento que tento não descurar nunca - o ser humano é tão profundo, rico e diversificado como as águas dos oceanos e quero mergulhar cada vez mais nesse mundo riquíssimo que somos cada um de nós.
28 de junho de 2014
27 de junho de 2014
26 de junho de 2014
Um milagre que aconteceu à nossa alma*
Sophia chegou-me através do cavalo-alado de Almada Negreiros que ilustrava a capa do livro Poesia I (Edições Ática, 1975, 3ºedição), que um dia encontrei pousado numa mesinha lá em casa. Tinha uns quatro ou cinco anos e ainda não sabia ler. Lembro-me de ficar largos minutos a olhar o desenho, encantada com a possibilidade de existir um cavalo com asas - o cavalo sempre foi o meu animal preferido e desde aquele dia fantasiei inúmeras aventuras, tendo esse ser mágico como companheiro ideal.
Uns dois ou três anos mais tarde, já sabendo juntar letras e o significado de muitas palavras, sentei-me uma tarde no banco namoradeiro da janela da sala de visitas, escondida atrás dos reposteiros compridos, e comecei a ler o livro do cavalo que nunca perdera de vista, pelo fim, como ainda hoje faço. No ponto onde o silêncio e a solidão/ Se cruzam com a noite e com o frio,/ Esperei como quem espera em vão,/ Tão nítido e preciso era o vazio., continua a ser um dos meus poemas preferidos e sei-o de cor desde aquela tarde, quando ainda não conseguia alcançar o pleno significado das palavras que ele contém.
Começava, assim, o meu encantamento pela poesia. Primeiro com Sophia, depois com tantos outros cuja musicalidade escrita me enchiam de vida e sonhos. A poesia tornava-se, para mim, tão necessária como o ar ou como a água. Era e é um alimento do qual não consigo prescindir, embora nem sempre o consuma em iguais quantidades.
Acho que já li toda a obra de Sophia. Todos os poemas, que poderiam ajudar a escrever a história da minha vida - há um poema para cada momento, quase; os contos e livros infantis, cujas personagens enriqueceram a minha infância e imaginação; e os (pouquíssimos) textos em prosa, que encerram em si o essencial de toda a sua poesia e mensagem ética e estética.
Estes dois textos são os meus preferidos e já aqui os postei anteriormente, assim como muitos poemas de Sophia:
Caminho da manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
- in Livro Sexto, 1962 -
Retrato de Mónica
Mónica é uma
pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família,
ser chiquíssima, ser
dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos
negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar
muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de
toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem
dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde,
levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser
sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo
exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho
conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura.
Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de
tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e
uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a
sol.
De facto,
para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica
teve que renunciar a três
coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é
oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é
oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra
mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso
aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os
dias.
Isto obriga
Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar
a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção.
Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são
úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas
as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem
tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem,
até os desgostos.
Os jantares
de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A
comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica
nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a
sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua
inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência
que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima
de mandarins e de
banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e
cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre
com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada
de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o
próprio Sol se enerva.
O marido de
Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste
marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o,
aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma
coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o
casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O
contrato que os une é indissolúvel,
pois o divórcio arruína as situações mundanas.
O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso
que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a
obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus
amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças
já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela
todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer
a fímbria dos
seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso
Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel,
cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos.
Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito,
que ela serve.
Pode-se
dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra
trazida por Mónica.
Há vários
meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela
estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois
com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente
sabe que Mónica é seriíssima toda
a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o
desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural
que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é
o seu maior apoio; mais firme fundamento do
seu poder.
- in Contos Exemplares, 1996 (29ª ed.) -
Devo a Sophia não apenas o gosto pela poesia, pela palavra escrita e pela sonoridade das palavras. Devo-lhe, acima de tudo, a forma como quero olhar o mundo e a maneira como viajo: de olhos bem abertos, pois só o olhar não mente.
Ontem, numa noite orvalhada ainda em rescaldo são joanino, a Casa da Música encheu-se para homenagear Sophia. Quase dez anos após a sua morte foi emocionante perceber como ela, nas palavras do seu filho Miguel, continua deslumbrantemente actual. As lágrimas e a voz embargada da minha mãe não o deixaram mentir. As minhas foram choradas no silêncio da casa adormecida, durante esse lento círculo azul do tempo que Sophia tanto gostava.
(*Maria Velho da Costa, sobre Sophia)
31 de maio de 2014
...
Porto - Entre o Homem do Leme e o Castelo do Queijo
Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como dum Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anémona dos dias.
A anémona dos dias, de Sophia de Mello Breyner Andresen
23 de maio de 2014
As minhas sombras.
Fellini, se fosse vivo, teria pano para mangas, caso resolvesse pegar na minha pessoa como inspiração. Jung, então, já nem se fala.
22 de maio de 2014
O que fazer quando a exaustão, a tristeza e uma boa dose de frustração tomam conta de nós?
Dar o dia por terminado, entregar aos deuses, sentar, relaxar e regressar aqui:
21 de maio de 2014
Num dia de chuva.
Eu só queria despir-nos
Como se tira habilmente
A seda aos pêssegos
E nus adormecermos
Sem saber quem somos
Sem jogos aos ombros
Que vêm de pequenos
Pelo faro pelos poros
Pelo sono dos cabelos
Pelo estalinho dos dedos
Eu só queria deixar-nos
Como o sol a bater
Na cal dos muros
E nus adormecermos
Sem contar os beijos
Sem dizer piropos
Como o cio dos frutos
Como a pele dos bichos
Como o íman dos olhos
Dos velhos sentados
- Ao sol, de Joaquim Castro Caldas -
18 de maio de 2014
17 de maio de 2014
16 de maio de 2014
Inaudible Melodies.
Na minha janela - Maio de 2014
Hoje acordei com uma vontade imensa de ouvir Jack Johnson (JJ, para os amigos). Já não me lembro quando foi a última vez que o ouvi, sei que a certa altura deixou de me apetecer a sua voz, as suas músicas e as suas letras. Não sei explicar a razão. Não acredito naquela coisa do não devemos voltar aos sítios onde já fomos felizes, muito menos às músicas que já nos deixaram felizes ou marcaram vários momentos. O que é certo é que a determinada altura deixou de me fazer sentido ouvi-lo. Até hoje. Passei a manhã a percorrer canções e a cantar todas as letras, descobrindo não apenas que a minha memória não está assim tão má como às vezes parece, mas também que o JJ será sempre um velho amigo, daqueles que até podemos estar anos sem ver, tendo a certeza de que a intimidade e a sintonia continuam no momento exacto do reencontro.
Hoje, ao cantar juntamente com ele, fui desfiando memórias mais ou menos felizes: as viagens de carro ouvindo a sua música, os últimos Verões antes da entrada definitiva na vida adulta, aquele concerto em Barcelona, os miúdos ainda com cara de criança, o mais velho com o cabelo à tigela, o mais novo sempre agarrado a mim. O (verdadeiro) último Verão da avó e o cuidado que sempre tínhamos em pôr a música mais baixo quando ela ia dormir. A Primavera e o início do Verão em Roma. Lagos e a Meia-Praia. A Mary-Mary pequenina, ao meu colo, a dançar ao som da Bubble Toes. As lágrimas que as suas melodias iam encobrindo, sempre que chorava sozinha no quarto, durante aqueles anos difíceis (que teimam em não passar).
Hoje, mesmo não sabendo muito bem porque o deixei de ouvir, dei por mim a sorrir várias vezes e fiquei feliz com o nosso reencontro.
We get each other. We know that Plato's cave is full of freaks demanding refunds for the things they've seen!
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