E é chegada a hora!
Uma tarde, a meio de uns exercícios de gramática alemã, encantei-me com um melro que pousou no parapeito da varanda da Frau B.. Lembro-me de ficar largos segundos suspensa naquele encantamento, admirando a forma como esvoaçava, como batia as asas, como se enrolava sobre si mesmo para se coçar, como bebericava no pratinho com água fresca que a Frau B. nunca deixava faltar no parapeito para todos os pássaros visitantes.
Sempre me fascinou o voo dos pássaros, a forma livre como atravessam os céus do campo e da cidade, parecendo indiferentes ao que os rodeia, sobretudo a nós, humanos. Foi o badalar dos sinos dos Clérigos que me trouxe de volta aos verbos, aos artigos e afins, a ponta da caneta de tinta permanente colada ao caderno, um borrão enorme denunciando a minha distracção.
Vamos lanchar, Mädel!, disse-me a Frau B. já em direcção à cozinha, com a doçura de quem sabia que um chá e bolachas eram naquele momento muito mais urgentes do que os exercícios gramaticais.
A Frau B. foi uma das pessoas que mais me ensinou sobre liberdade. Liberdade com responsabilidade, pois ninguém é verdadeiramente livre se não souber ser totalmente responsável por si mesmo.
Demorei muito a entender a profundidade e o completo significado destas palavras. Hoje, não sendo já a sua menina, mas uma mulher feita, chegou finalmente a hora de ir viver a minha liberdade, com toda a responsabilidade - por ela, por todos os que amo e que também já partiram e todos aqueles que ainda tenho à minha beira mas, acima de tudo, por mim mesma.
* Álvaro de Campos, "Tabacaria"
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