24 de maio de 2011

Lucinda.

Sentou-se ao meu lado num autocarro quase lotado. Ajeitou-se no assento, compôs a blusa e colocou a carteira no colo, com as mãos entrelaçadas por cima. Pouco depois senti um leve toque no braço, que me trouxe o olhar de novo para o interior. Desculpe, a menina tem horas certas que me saiba dizer? O relógio parou nas duas da tarde e nem dei conta. Depois de verificar no telemóvel - desabituei-me de usar relógio já há uns anos, disse-lhe as horas, sorrindo ao ver a expressão do seu rosto. Nunca me lembro que essas geringonças também têm horas, disse soltando uma pequena gargalhada, que me fez sorrir ainda mais. Afinal vou com tempo, continuou, já estava a ficar com receio de me ter atrasado. Detesto fazer esperar, sabe? Já somos duas, respondi-lhe. Hoje é a minha única tarde livre, prosseguiu, livre de netos, quero dizer. Todas as 3ª feiras lancho com um grupo de amigas. Eu sou a mais velha, 86 anos feitos em Março, a mais nova tem 81, diz ela, que cá para mim já são mais. Fez um sorriso maroto e rematou: sabe como são as mulheres, sempre que podem fogem à verdade em relação à idade. Eu sorri também e disse-lhe que sim, que era verdade, algumas eram mesmo assim. Mas que a ela não lhe dava mais de setenta, no máximo. Ui, onde já vão os 70 anos...mas olhe, de espírito não tenho mais de 40, que o digam os meus netos, que têm que suar as estopinhas para aguentarem a minha pedalada. Sabe, fiquei viúva há 5 anos, depois de uma doença prolongada e sofrida do meu marido. Estivemos casados 60 anos, com mais 9 de namoro, uma raridade nos dias que correm. Fui secretária de um advogado até me reformar, tenho uma reforma mediana, que se compõe com a pensão de viuvez. Um mês depois da morte do meu marido desfiz-me do carro - ainda era uma máquina razoável e estava em óptimo estado, e com o dinheiro da venda e mais umas poupanças, peguei nos meus cinco netos e numa sobrinha que tinha na altura 20 anos - para me ajudar com a tropa, que sozinha também era puxado, e fomos os sete à Eurodisney. Sempre fui uma avô presente e dedicada, mas desde essa altura que vivo por eles e para eles - e pelos meus filhos e pelos meus amigos, que ainda me querem cá durante mais uns tempos. Eu ia calada, atenta e emocionada com o relato, com a leveza e com a alegria daquelas palavras. Não havia ali tristeza, frustração, remorsos, amargura, nada mais além do que o sentimento de alguém que sabe estar de bem consigo mesma e aproveitar ao máximo aquilo que a vida lhe vai dando. Agora, continuou, depois dos afazeres domésticos e dos meus pequenos prazeres - finalmente tenho tempo para ler e para ver os filmes todos que me apetece, aproveito o tempo que sobra a passear com os meus netos, a contar-lhes histórias, a ajudá-los com os deveres da escola - quase nem precisam, são crianças espertas e responsáveis, graças a deus e aos pais deles. Passei a utilizar os transportes públicos, que me levam para onde quero e sem grandes preocupações e assim sempre vou fazendo algum exercício físico também. Tenho bons amigos, alguns já foram desaparecendo, que isto a roda da vida não pára de girar. Hoje vamos comer gelados a um sítio novo que parece que abriu recentemente e é muito agradável, segundo dizem. Depois ainda vamos ao cinema, mas ainda nem sei qual o filme escolhido. A contragosto, pois estava deliciada com a conversa - era mais um monólogo, mas ainda assim, completamente delicioso, disse-lhe que já tinha que sair na paragem a seguir. Eu também minha querida, assim também já não a maço mais. Não me maça nada, é um prazer ouvi-la, foi tudo o que tive tempo de dizer antes de o autocarro começar a parar e nós termos de descer. Foi aí que pude olhar melhor para aquele ser luminoso: calças cor-de-laranja impecavelmente vincadas, blusa acetinada de fundo verde e motivos tropicais coloridos, sandálias e carteira de couro a condizer, num amarelo-mostarda que eu tanto gosto e um cabelo branco impecavelmente tratado, com uns caracóis perfeitos, iguais aos da Frau B. Já no passeio, pegou-me na mão e disse-me sorrindo: Obrigada por este bocadinho minha querida, foi muito bom falar consigo. Posso dar-lhe um beijinho?, saiu-me de repente, sem pensar, esquecendo-me por completo que estava a falar com uma pessoa estranha e não sabendo qual seria a reacção à minha pergunta. Recebi um abraço delicado e um beijinho que me comoveu. Que falta de educação a minha, nem me apresentei. Chamo-me Lucinda, disse-me enquanto ainda segurava a minha mão. Eu sou a Mariana. Como a minha filha e a minha neta mais velha, sorriu. Espero encontra-la mais vezes minha querida. Fez-me uma festa no rosto e despediu-se, seguindo na direcção oposta à minha. Eu fiquei ali a vê-la partir, a carteira ao ombro, o andar determinado e leve ao mesmo tempo, os caracóis brilhantes pela incidência da luz do sol. Minha querida Lucinda, quando crescer quero ser exactamente assim.

2 comentários:

Strangers disse...

também quero ser uma avó Lucinda*

Mar* disse...

Não te imagino de outra forma ;)

Abraço bom*